O absurdo da perenidade destruída pelo acaso.
São dois os níveis de compreensão para este desaparecimento. Um, o econômico e cultural. Outro, o filosófico.
Falar, portanto, sobre o prejuízo que significa o aniquilamento de centenas de obras, para um país que ainda se encontra em tão precária situação cultural, seria o óbvio. Dizer que o ocorrido corresponde ao dano de uma sala histórica destruída em Versalhes, talvez fosse até impróprio. Afirmar que não existem recursos para a substituição ou restituição de um patrimônio artístico desta monta é cair na banalidade de uma evidência.
Do ponto de vista ético, no entanto, importa agora só a compreensão filosófica deste acontecimento lastimoso. É o momento em que fatalmente se questiona a fragilidade, não do homem, mas das suas manifestações. Mesmo as que carregam a aura da imperecibilidade, o sentido de sua representação espiritual maior. As que continuam a gerar reverência tanto entre o público comum quanto entre a vanguarda que justamente contesta estas qualidades. Da mesma forma como há a serena aceitação da transitoriedade da vida humana, é extremamente difícil duvidar da perenidade da obra de arte como objeto e como idéia representada. No seu sentido tradicional ou contemporâneo, ela ainda parece representar a perpetuação do homem. Queira o artista ou não, existe a noção de que a obra o ultrapassa no tempo e no espaço.(...)
A conhecida escultura do suíço Jean Tinguely, que se autodestruiu em alguns minutos, talvez tenha sido a primeira de todas as manifestações desmaterializadas da arte. Pois, além de colocar em questão as características convencionais da arte tradicional, apresenta a obra verdadeiramente indestrutível, porque na própria destruição está a idéia da sua perenidade.
Não obstante, como explicar o sentimento de dor que nos invade ao saber da destruição real dos valores por nós tão contestados? As idéias acabam por permanecer soterradas sob o metafísico e irreparável sentimento de perda, que não é mais do que um profundo e irracional sentimento de amor. O mesmo que gera o próprio ato da criação.
Trechos do artigo escrito na manhã de domingo, dia 9 de julho de 1978, na própria redação do jornal O Estado de S. Paulo, enquanto que lágrimas rolavam pelo meu rosto. Eu estava sob o choque da notícia do incêndio no Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio de Janeiro, desastre sem precedentes na história das grandes coleções de artes plásticas onde desapareceram duas telas de Picasso, duas de Miró e centenas de obras de artistas brasileiros colecionadas ao longo de 20 anos. De mil obras, restaram 50, e dos dois andares atingidos, cinzas. O sinistro do MAM atingiu dimensões jamais registradas. Além do acervo do museu, queimou-se toda a mostra Arte Agora II onde estavam expostos 205 quadros de pintores latino-americanos, entre eles toda a fase construtivista do uruguaio Joaquín Torres-Garcia, um período de quase duas décadas de criação.
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