Quando a lei das religiões não pode ser imposta à lei dos homens
Talvez este seja o meu último post sobre o assunto, já ouvi demais. Ouvi em demasia dos cegos, incultos e insensíveis que nem se dão ao trabalho de compreender o país onde os fatos ocorrem, antes de abrirem a boca.
#CharlieHebdo, sobrevivente do Islã radical e mais precisamente do terrorismo da Al-Qaeda que retoma o fôlego perdido, é - como todos sabem - francês. Portanto, deve ser analisado dentro do contexto francês, e não do ponto de vista de um papa argentino, padres brasileiros, jornalistas americanos protestantes e sobretudo de brasileiros simplórios que agora pensam que a França caiu na "armadilha de uma guerra santa contra o EI por causa de três terroristas muçulmanos". Como se a história mundial dos milhares de ataques do Islão radical nos últimos séculos não bastasse ou como se agora, na declaração de guerra ao terrorismo, não houvessem mais aliados do que nunca!
Ora, se o "delito de blasfêmia" existiu aqui, muito antes da Revolução Francêsa, ele foi definitivamente suprimido pela lei de 29 de julho de 1881 que já se referia à liberdade de imprensa, 7 anos antes da abolição da escravatura no Brasil! Na França, a liberdade de expressão é um princípio. Possui limites distintos, pois são condenáveis pela jurisdição apenas os seguintes delitos:
1) Ofensa pessoal
Charlie Hebdo sofreu processos, como qualquer jornal, porém jamais incorreu em alguma destas infrações e jamais foi condenado ou perseguido por isso. Seus desenhos gozadores, mesmo os de "mau gosto", “"rreverentes" ou "desagradáveis" podem ser considerados, no máximo, blasfematórios. Mas blasfêmia, em estado laico como a França, não é crime! O estado laico não é apenas uma singularidade extraordinária, é uma PRECIOSIDADE que foi conquistada a duras penas!
Devemos ficar reconhecidos que a imprensa, por meio do sacrifício de #CharlieHebdo, reencontre a sua formidável tradição histórica da sátira, que foi esquecida e/ou obliterada pela descerebração mundial! Como não pensar em Daumier, Cham e mais tarde o jornal "Le Crapouillot"(1915), André Gill, sob o Segundo Império cujas caricaturas são célebres. Aristocratas ou não, políticos, escritores, a Igreja católica e o Vaticano, todos sempre tiveram que se submeter à ironia dos caricaturistas, em sua maioria anticlericais.
#CharlieHebdo não pode ser comparado a um criminoso como Dieudonné, julgado pela Justiça francesa. #CharlieHebdo reside na França, onde a liberdade de expressão é estabelecida pela lei republicana e não pela lei religiosa! Aqui é proibido ofender os crentes, mas pode-se ridicularizar qualquer religião e seus dogmas.
Na França de hoje, têm-se a liberdade de fazer caricatura de tudo e de profetas de toda ordem, sejam eles muçulmanos, cristãos ou judeus. Neste país existe uma tradição iconoclasta (moderna) porém não há qualquer herança iconofóbica advinda das civilizações árabes e bizantinas. A lei das religiões não pode ser imposta à lei dos homens. Sobretudo se esta lei serve como razão para matar inocentes.
Imagens: "Foto símbolo" de Stéphane Mahé (Reuters). "A Liberdade guiando o povo" (1830), de Eugène Delacroix.
Marcadores: amor, democracia, França, laicidade, liberdade